O título deste texto também é o título de um poema de Manoel de Barros
Trechos da entrevista publicada no Blog Sirva-se
Por Bruno Jaborandy
Ilustrações: Pedro Lucena
Uma casa de muro azul no bairro de Ponta Grossa, em Maceió, abriga um artista que tem lá seus 30 e poucos anos de idade. Nos fundos dessa casa em um espaço que parece ter sido construído para isso, funciona o QG de onde saem os desenhos tão característicos desse artista. É seu ateliê e, segundo ele, o espaço menos quente da casa.
Dez anos marcam o tempo em que ele começou a despertar para a possibilidade de transformar seus desenhos em oportunidades. Sua obra alcançou lugares que ele não imaginava alcançar. O “complexo de pequenez” foi superado e a meta agora é ganhar o mundo. Começando pelo Velho Continente e depois, quem sabe, sair um pouco mais da sua cidade natal.
É preciso estar no eixo dos acontecimentos. Ele já perdeu o controle do alcance que sua obra tomou. Teve gente que já marcou no corpo os traços que ele marcou no papel, teve muita gente boa que citou o seu trabalho.
André Dahmer chamou-o de “O Monstrinho da Ilustração”. Laerte conheceu seu traço e curtiu as texturas, chegando a elogiá-lo via Flickr. Aqui na cidade quem não sabe quem ele é está vacilando. Cartazes de shows, capas de disco, matérias de revista, todas elas já receberam os desenhos de Pedro Lucena.
O desafio agora é de artista gente grande. A partir do dia 05 de novembro Pedro vai abrir no Espaço Anémona, na cidade do Porto, em Portugal, a exposição “Ciscos”. As obras dessa exposição se inspiram na obra poética do artista nascido em Cuiabá(MT) Manoel de Barros e no trabalho dos artesãos da Ilha do Ferro, localizada no município de Pão de Açucar, em Alagoas.
As figuras corcundas, retorcidas, feitas de maneira a seguir o fluxo da natureza inspiraram o artista alagoano a mixar esse trabalho com os temas da poesia de Manoel de Barros, que também tem a natureza como excelência em sua obra.
Pedro me recebeu em uma tarde de segunda-feira para conversarmos. Da Amazônia a Portugal, passando por Maceió, conversamos sobre morar na cidade, o começo da carreira e como é necessário ter coragem para fazer as coisas acontecerem por aqui. Mexer com arte já é complicado, que dirá viver disso.
Com vocês algumas das ideias de um cara que consegue viver de arte em Maceió:
O PONTAPÉ INICIAL DO ARTISTA
Como foi que o desenho deixou de ser hobbie para começar a ser uma atividade profissional?
Eu terminei a Universidade, fiz Direito na UFAL, e eu tinha alguns amigos que trabalhavam com teatro que queriam porque queriam que eu trabalhasse com eles desenhando a identidade visual das peças. Aí fiz um trabalho com a Associação Teatral Joana Gajuru, um trabalho de cartaz, para o espetáculo Baldroca, inspirado no conto Corpo Fechado, do livro Sagarana, o que me fez começar a me apaixonar pela obra do Guimarães Rosa. Eu comecei a fazer por insistência dos amigos porque eu não queria fazer nada.
Nessa época você não acreditava na força do seu desenho?
É, eu não sentia que era bom, que tinha personalidade. Era um complexo de pequenez, como diria um amigo meu. Durante a graduação eu desenhava e guardava na minha gaveta, não mostrava para ninguém.
O lance todo começou depois que eu voltei da Amazônia, em 2006. Fui trabalhar em um lugar que se chama Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Eu levei papel e caneta, porque eu gostava muito de desenhar e achava que ia ter mais horas vagas. Aí cheguei lá e fiquei louco com o lugar, com a natureza. Não era uma cidade linda, vá lá, era como Maceió (risos), mas os arredores eram incríveis.
Eu me maravilhava com tudo, ficava em frente ao lago Tefé, vendo os botos, a visão das garças é linda, o verde contrastando com o branco dos bandos de garças. Quando eu estava lá eu fiz um desenho, que era uma ideia que eu tinha da mata de várzea. Eu coloquei no meu quarto, que era basicamente um colchão no chão e uma geladeira que servia de armário. Os tapetes indígenas que eu comprei e os meus desenhos na parede decoravam o quarto.
Um cara que morava na reserva também, chamado Paulo, e era coordenador de preservação dos quelônios (tartarugas, tracajá) ficou encantado com o desenho e me perguntou onde eu o tinha comprado. Ele perguntou então se não rolava de fazer uma cartilha para ele, foi aí que comecei a fazer a cartilha. Quando eu voltei, eu pensei: cara, eu preciso começar a desenhar e mostrar para o povo. Aí eu abri o Fotolog e o primeiro trabalho que apareceu foi o Balanço Qualitativo e Quantitativo das Empresas de Comunicação, do Telecom, em 2006.
E como era sua rotina nessa época?
Eu dava aulas de dia e desenhava a noite. Tinha dupla personalidade. Eu dizia que era artista visual e de dia eu era professor. Eu trabalhava mais a noite e nos fins de semana.
Você pensa em dar aulas de artes visuais um dia?
Cara, eu não sei, porque tudo que eu faço é muito intuitivo. Tem técnicas que eu gostaria muito de trabalhar bem com elas, como aquarela, por exemplo, eu adoraria trabalhar com aquarela, queria muito fazer xilogravura também.
Você abandonou seu emprego formal e hoje trabalha apenas como ilustrador. Como foi esse processo?
Isso. Só estou desenhando. Deixei, e aí vamos ver no que vai dar, foi mais fácil do que eu imaginava.
Hoje você já consegue tirar uma grana para se manter?
Sim, já rola. Agora não muito porque eu estou fechado nesse projeto e estou dispensando algumas coisas que estão aparecendo. Espero que essa exposição na Europa abra muito espaço. O circuito de artes de Porto é muito movimentado. Eu quero trabalhar também em grandes eventos, mas eu preciso explorar mais outros pontos do meu trabalho.
Quais as principais referências do seu trabalho?
As minhas primeiras referências caem em dois pontos muito diferentes. Primeiro é o Walt Disney, que quando eu era criança via muitos os filmes e lia os quadrinhos. Tinha um livro em casa que era uma edição Malba Tahan de ‘A Divina Comédia’ que me fascinava pelas ilustrações, feitas por um ilustrador francês chamado Gustave Doré. Ele trabalha com uma luz com bico de pena que é impressionante. Durante muito tempo esse livro me fascinou porque aquelas imagens do Inferno eram assustadoras.
Depois vieram os grandes mestres, eu adorava ver El Greco, Van Gogh, Vermeer. Outro cara que tem uma pincelada mais longa que é o Klimt, que eu adoro. Uma coisa que eu gostava quando era mais pivetão era Velasquéz, quando via os livros de arte do meu pai.
E atualmente no Brasil, quem te inspira?
Eu gosto muito de “os gêmeos”, claro, mas gosto muito também do trabalho do Stephan Doitschinoff, que é um cara que trabalha muito com a dualidade pagão x sacro. Gosto muito também do Renato Alarcão, que trabalha com ilustração para livros infanto-juvenis e, como tem muita técnica, ele consegue transitar por várias facetas, ele trabalha com clássicos, capa de livros, ministra oficinas, etc. Angeli é muito bom. Ionit Zilberman que é uma autora e ilustradora israelense radicada no Brasil, ilustrou o livro ‘As 14 Pérolas da Índia’. O livro é lindo, feito com lápis de cor. São pessoas super acessíveis, dá para trocar ideias. De fora do país eu gosto dos franceses Rebecca Dautremare e Benjamim Lacombe, que são fantásticos.
Além dos trabalhos para a exposição, no que você está trabalhando atualmente?
Eu estou fazendo um trabalho agora que é muito legal, a Panda Books está com um projeto que se chama Clássicos Panda, e eu fiz a ilustração dos dois primeiros livros que são Iracema, de José de Alencar e Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida. A gente está trabalhando com um estúdio de design de São Paulo que chama Casa Rex. É um trabalho voltado para adolescentes, tem muito a ver com meu traço, não tem cor, é mais linha mesmo, e pela questão da visibilidade mesmo que meu trabalho vai receber, e ainda tem Dom Casmurro, de Machado de Assis e O Cortiço, de Aluísio Azevedo, mas eu estou doido que o trabalho termine, para eu colocar no meu portfólio.
Como é feita essa tradução entre a imagem que a poesia te proporciona e a imagem visual?
Lendo Manoel de Barros, vendo a Ilha do Ferro eu percebi que eles pretendiam fazer a mesma coisa, só que em diferentes campos das artes.A Ilha do Ferro trabalha a humanização da natureza por meio da escultura e o Manoel, através da poesia. Eu venho fazendo assim: crio as obras e depois eu vou buscar o texto. São sempre essas figuras que estão em comunhão com a natureza, né? São essas figuras estranhas que tem o apreço pelas coisas naturais, e tem um lance muito recorrente que é o chão, que é ensinamento, segundo o autor, o que parece ser mas na verdade não é, dentro da natureza, que é o que faz o artesão da ilha, né? Um galho que parece uma cobra, o artista da Ilha do Ferro acaba transformando em cobra. Um galho que parece uma cadeira, ele acaba transformando em cadeira. E o Manoel gosta de fazer isso na poesia.
Como foi a convivência com os artesãos das Ilha do Ferro ?
Eu me hospedei na casa da filha do Seu Fernando, um dos principais artesãos dessa comunidade, já falecido. Foi muito bacana, os caras têm amor à arte. Ganhar dinheiro é conseqüência. O mestre Aberaldo fala que só vende as suas obras porque é preciso, pois se ele pudesse, ele guardaria tudo o que faz. Apesar de não ter muito apego com as coisas que crio tem algumas que eu queria ficar. Todas essas figuras que estão nesse trabalho são inspiradas em figuras criadas pelo mestre Aberaldo.
E quais são os materiais que você usa no seu trabalho?
Nanquim. Geralmente eu uso nanquim e aquarela e uma caneta fantástica que eu descobri que eu uso para fazer detalhes brancos em estruturas pretas.
Qual o primeiro livro que você lembra de ter lido, que te marcou?
‘O Pescador e Sua Esposa’, que é um conto dos Irmãos Grimm. Minha mãe nem lembra, mas ela me trouxe de presente. Tem uma coisa muito forte no meu trabalho, ele tem uma base literária muito forte, eu gosto de ter isso, acho muito importante. Como eu trabalho muito com narrativo, a estrutura é bem narrativa, eu sou muito influenciado pelo que eu leio. Gosto muito mesmo do Gabriel Garcia Marquez, eu li muitos livros dele, pouquíssimos eu não li. Gosto muito do Julio Cortázar, do Rubem Fonseca, sou fã do Rubem, mais dos contos do que dos romances. Também gosto do Machado de Assis. Agora mesmo eu li um russo, chamado ‘O Mestre e Margarida’, de Mikhail Bulgakov, um livro muito importante na Rússia. E estou lendo ‘O Livro das Mil e Uma Noites’, em que as histórias são fantásticas nos dois sentidos, de qualidade e de fantasia mesmo. Todos esses livros vão se acumulando e é muito bom, como artista, poder citá-los no meu trabalho, claro que com um toque pessoal. Também sou muito fã da Rachel de Queiroz e do próprio Guimarães Rosa.
Qual o conselho que você daria para alguém que está começando?
O primeiro ponto é você tentar criar um portfólio bacana e firmar a sua identidade. Ser reconhecido pelo seu traço. Depois é você passar a publicar. Existem muitas vertentes. Sei lá, se você de repente gosta de trabalhar com intervenção urbana, com propaganda. Tem também galerias, publicações. Cenografia é uma coisa bacana também.
Existem vários circuitos, você só tem que achar o seu. Não precisar de ninguém é um bom ponto. Quando publicam seu trabalho só porque você é amigo de fulano é chato, isso não me interessa. Antes de exibir no SESC eu mandei meu trabalho para uma revista australiana chamada Pages Online, mandei na sexta-feira e na segunda já me mandaram dizendo que queriam publicar, mas tive medo de enviar, pois achava que eles não iriam gostar.
Quem quer se firmar nessa área não pode ter medo disso, de jogar seu trabalho às feras.
Para ler a entrevista na íntegra, acesse o Blog Sirva-se
*Bruno Jaborandy, autor deste texto, é jornalista, músico e colaborador do Mundo Leitura
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