*Penélope Martins escreveu para Coluna
Gostar de LER
Diário de um Neto, de Regina Gulla
“A minha avó é de algodão e tem pálpebras de pano.”
Quando eu era bem pequena adorava o cheiro da roupa de cama recém-passada a ferro. Um cheiro macio que cocegava o céu da boca e amaciava os sonhos a cada viradinha de travesseiro.
Colher de paisagens. Eu nunca cansaria de ver minha avó colocar os lençóis para secar no varal. No fundo daquela casa que não existe mais no mundo, mas insiste na minha lembrança, o tanque de cimento era um poço de fazer rir.
Quando ameaça chover, corríamos para recolher a roupa botando tudo no tacho de alumínio. Tacho grande se usava naquela época das roupas penduradas em varal.
Muitas das vezes a chuva era mais rápida e minha avó sacudia tudo para tentar esfarelar os pingos. Algumas sacudidelas até davam certo. É que sol era forte e logo fazia o algodão secar.
Meu avô não tropeçava em palavras porque ele era um homem bem rústico de hábitos bem simples e que falava pouco. Bem, contava “causos” de maneira bem empolgada, mais das vezes só ouvia o rádio mesmo.
O rádio de madeira era bem elegante, eu me lembro. Queria ter ficado com ele para mim: com o rádio digo, porque com meu avô eu fiquei toda a vida.
“Meu avô é muito decidido. Ele se nega a pronunciar palavras geladas.”
Fosse por isso mesmo ou por outro motivo que ele nem mesmo sabia, meu avô vivia com as calças dobradas para fazer vento em suas canelas. Os pés calçados em sandálias de couro.
Meu avô usava camisa de mangas curtas e levava um pente no bolso.
A casa de poucos móveis faz o vento circular lá dentro, assoviar canções e erguer cortinas num balé ondulado lá e cá.
Nos vidros canelados o sol fica ainda mais multifacetado. Bonito ver como cada raio atravessa uma bolota de vidro e faz bater cor diferente sobre o piso.
O cheiro da casa da avó é o cheiro mais melodioso que existe.
Casinha da marambaia, avó cantarolava enquanto tecia meus cabelos com tranças de rainha.
A noite chega com um mar de caminhas estendidas na sala de televisão. A casa é pouca e o sofá também vira cama porque neto também tem que dormir.
O chique-chique do trem mergulha na nossa cabeça como uma canção de ninar. Sonhos de trilhos são bons filmes preto e branco.
“Quando a madrugada boceja o dia desperta no céu da nossa boca: bola, pião…”
Filão de pão com margarina é a melhor receita para nossa fatia de manhã.
Outros dias tantos seriam do melhor junto de avó e próximo de avô e todos os tios que por ali estavam.
Criança descobre história em tudo, até na pálpebra afrouxada da avó.
Regina Gulla também é avó, carrega lembranças de neta por certo. Escritora e professora de escrita literária na oficina Gato de Máscara, Regina tem diversos trabalhos publicados, entre eles os destinados à infância.
No livro “Diário de um Neto”, Regina Gulla está acompanhada do trabalho de Laura Teixeira, artista plástica paulista mestre em Design pela Universidade de São Paulo.
Regina escreve com deliciosas figuras de linguagem e Laura cria imagens com vínculos de ternura.
O livro, publicado em 2012 pela Editora Melhoramentos de São Paulo, indicado para o leitor interessado em mergulhar no universo sensível, qualquer que seja sua idade, é um bom passeio na casa dos avós.
QUEM ESCREVEU ESTE TEXTO
Penélope Martins, escreve para o Blog: Toda Hora Tem História.
O texto compartilhado neste post, foi publicado na Coluna Gostar de LER , onde a escritora apresenta livros, autores e textos literários.
Portal Mundo Leitura em sintonia com quem ajuda a promover um universo de livros e histórias.
Penélope,
adorei ler sua coluna e no final descobrir que já te conheço… da oficina de Conversas ao Pé da Página, de Katsumi Komagata.
Trocamos cartões e ficamos de nos falar… mas agora essa leitura foi mais especial.
Gostei muito!