Com a palavra Nilton Resende

  • Por Simone Cavalcante               Fotos de Marcelo Albuquerque e Amanda Nascimento

 

“Mordo o biscoito que levei vagaroso à boca, e ele quebrando-se é como os ossos que se esmagam”. A frase cortante do primeiro conto de Diabolô soa como um aviso ao leitor que visita a obra. Essa é uma das senhas que o escritor Nilton Resende utiliza para descrever existências com cargas densamente humanas. Ao lado do prosador, também vive um poeta antenado com o mundo e suas incertezas. Suas tramas e seus artefatos poéticos são hóstias compartilhadas com os leitores sobre dores, belezas e  inquietudes do mundo. Na entrevista, o autor fala de livros, conquistas e de sua relação com a literatura

 

Retrato de um artista irrequieto

Mundo Leitura: Você é escritor de poesia e contos. Qual dos dois gêneros requer mais trabalho?

Nilton Resende: Ambos são trabalhosos. Mas eu acho a prosa mais difícil do que a poesia. Mais difícil no sentido de se conseguir fazer algo de qualidade, por causa de sua extensão. Eu acho que são mais palpáveis as qualidades de um poema – além disso, há a tendência à brevidade. Mas as qualidades de um texto em prosa são menos palpáveis. Parece-me mais difícil escrever um bom conto e um romance do que um bom poema. Agora, estou trabalhando em um romance, e é algo bem mais difícil, porque há uma busca de que não haja instantes de queda. É algo complicado, porque é preciso que a escrita seduza durante todo o tempo, durante toda a extensão do texto.

Mundo Leitura: Como a originalidade entra em jogo na literatura frente às influências de leitura de mundo que todo escritor recebe?

Nilton Resende: Acho que isso se assemelha a como nos vemos dentro de uma família. Muitas vezes, eu acho bonito ver membros de uma família caminhando juntos, conversando, comendo… Fico observando as semelhanças e também as diferenças. Eles se assemelham, mas têm identidades próprias. Acho que acontece de modo semelhante quando tratamos da relação entre um artista e aqueles que o influenciaram, e olha que existem influências não conscientes. Para mim, é como se um artista ocupasse uma sala dentre diversas possíveis salas e, nessa sala, há aqueles com quem ele dialogou, dialoga, poderá dialogar; e há semelhanças entre eles, mas cada um tem sua própria voz. Não sei se a originalidade é algo buscado ou é algo que acontece. Nem sei se há originalidade. Agora, respondendo a você, prefiro dizer identidade, características que permitam um reconhecimento, uma assinatura. Originalidade… não sei.

Capa da primeira edição da obra

Mundo Leitura: Seus dois livros O orvalho e os dias e Diabolôforam premiados. Como as premiações colaboram com a trajetória de um autor? 

Nilton Resende: Ambas as premiações permitiram a publicação do livro. É interessante esse tipo de premiação que permite a publicação de livros. Outras premiações vão para livros publicados, outra coisa interessante, porque joga uma luz sobre a obra, divulgando-a. O que não pode haver é o autor acreditar que a premiação quer dizer algo mais além disso – ela serviu para tornar possível a publicação ou para divulgar o livro já publicado. O que não se pode é achar que seu livro é maravilhoso ou que é melhor do que outros livros; afinal, ele apenas agradou a um júri em específico. Ganhar não quer dizer ser o melhor; perder não quer dizer ser ruim. E é preciso que se tenha em mente o seguinte: toda vitória é uma exceção. O “vencedor” é um dentre muitos. Então, por que ficar com dor de cotovelo por não ter ganhado? Claro, não é algo que dê contentamento; mas, é preciso, no instante seguinte ao do resultado, esquecer isso e seguir em frente. Afinal, se a pessoa vence, todas as outras terão perdido. Ela se torna a exceção. O importante é saber isto: os concursos servem por seu valor prático, e não como definidores de qualidade desta ou daquela obra.

Nova edição premiada no concurso Alagoas em cena 2006

Mundo Leitura: Ao compor o livro O orvalho e os dias, que critérios você utilizou para selecionar os poemas que deveriam ou não ser publicados?

Nilton Resende: O livro foi uma variação de um livro anterior, de mesmo nome (que já era uma lapidação de uma primeira versão). Nessa última edição, usei como critério o trato formal, principalmente. E também o não proselitismo. As primeiras versões estavam muito encharcadas de uma tentativa de serem veículos religiosos. A religiosidade permanece na última versão, a mística permanece, mas acredito eu, de um modo que não fere a poesia, de um modo que não é panfletário. Ela aparece mais misteriosa, mais velada.

Mundo Leitura: Se pudéssemos estabelecer um fio, diríamos que sua obra Diabolô é cortante como o fio da navalha. Ao descrever personagens sem máscaras, imperfeitos e desajustados aos padrões sociais, o que você deseja provocar?

Nilton Resende: Não sei bem o que eu desejava provocar quando escrevi o livro. Talvez eu me lembre do que desejava em cada conto – dos aspectos humanos que eu pretendia colocar ali. Eu sei que queria algo que não fosse agradável. Na verdade, talvez agora eu saiba o que quero fazer com meus textos. Eu quero escrever livros que, do modo mais extremo que eu possa conseguir, sejam violentos, humanos e belos. É o que eu busco nos livros: violência, humanidade e beleza.

Contemplada no Prêmio Lego de Literatura 2009

Mundo Leitura: No conto “A ceia”, o narrador-protagonista é um pré-adolescente que descreve uma série de maldades praticadas com o avô indefeso. Quando se estrutura um enredo como esse, o autor toma partido e se angustia com os dramas das personagens?

Nilton Resende: Acredito que o autor, ao escrever, não passa incólume pelas coisas que ele narra. Ele se diverte, sofre, dependendo do que está no texto. No caso de “A ceia”, em particular, por ser um texto narrado em primeira pessoa, eu, ao escrever, tentava me grudar o máximo possível ao protagonista, então, não podia ver o avô como digno de misericórdia, ou o conto iria para outro caminho. Eu tinha que dar o máximo de liberdade ao menino. Se havia uma consciência dos danos provocados ao idoso, era pela ótica do menino, ou seja, uma consciência sádica, mesmo. Apenas depois, como leitor, é que eu vejo o sofrimento daquele homem, apenas depois de escrito o conto foi que eu me compadeci dele. Se eu tivesse me compadecido antes, o conto não teria nascido.

Mundo Leitura: Este ano os contos “A ceia” e “A Fresta”, do livro Diabolô, foram selecionados e traduzidos em publicações internacionais. Qual a sensação de circular fora de seu país?

Nilton Resende: É uma sensação de contentamento, porque haverá uma divulgação maior de meus textos. Mas, também, contentamento por estar colhendo o fruto de uma certa obstinação. Eu procurei tradutores, contratei as traduções, e a seleção deles para as revistas foi, de certo modo, o complemento dessa minha busca. A Alison Entrekin, que traduziu “A fresta” para o inglês, indicou o texto para a seleção da Litro Magazine, e o conto foi aceito. Eu enviei para a Fundação Biblioteca Nacional a tradução para o espanhol que o Pablo Cardellino Soto fez de “A ceia”, e o conto foi escolhido para estar na Revista Machado, que representará o Brasil em Frankfurt. Então, é uma sensação de alegria, porque eu não cruzei os braços e nem estaquei as pernas, esperando que me vissem, que me encontrassem, mas agi, criei condições para ser visto. E, sendo visto, apreciaram o trabalho. Isso é bom, é muito bom e, do mesmo modo como não posso me julgar grande coisa pelo fato de os textos terem sido selecionados, também não posso ter a atitude blasé de dizer que isso não me alegrou. Não posso pensar que meus textos são melhores do que os não selecionados, mas, eu seria muito hipócrita se não assumisse que estou muitíssimo feliz por  eles terem sido escolhidos.

Mundo Leitura: Além de escrever, você é pesquisador e professor de literatura. É possível conciliar esses papéis?

Nilton Resende: Sou cada vez mais um não acadêmico. Espero poder ser, no máximo, um professor – porque gosto de ensinar -, mas não estar muito envolvido com a academia. Para ser acadêmico, é preciso ter paixão por isso, e eu não tenho. Sou apaixonado pela Literatura, mas não sou apaixonado pela academia, pelos modos da academia. Não digo isso desmerecendo-a, digo por não ser ela um lugar em que eu me sinta bem. Eu quero me afastar do pensamento teórico sobre a literatura que não venha de minha relação com os textos literários, de minha fruição deles. Quero ser um fazedor de literatura; quero que toda a teoria que eu possa apreender se exercite, se faça nas personagens e seus dramas. Para mim, atualmente, esses papéis estão praticamente inconciliáveis, está muito doloroso tentar juntá-los.

Nilton em peça O mágico, encenada no Teatro Jofre Soares

Mundo Leitura: A literatura se faz presente na sua atuação no teatro e na direção artística em cinema?

Nilton Resende: A minha relação com a Literatura é de certo modo a mesma que estabeleço no Teatro ou no Cinema. Em todos eles, eu trabalho com a criação de personagens, com a criação de pessoas fictícias e críveis, pessoas com dramas reconhecíveis e que tenham uma carga psicológica densa. Eu estou sempre às voltas com a humanidade, com dar forma a ela, com representá-la. Quando estou no palco, no mais das vezes, faço não para que me vejam, mas para que o público se veja. Meu trabalho é também uma doação, por mais que haja a vaidade do artista, porque essa doação deve ser bela. Tudo que faço artisticamente, eu acho que pode ser resumido no nome de minha performance poética: Hóstia.

Mundo Leitura: O artista tem antenas voltadas para um amanhã, aos olhos da maioria, ainda nebuloso. Como lidar com essas inquietudes, deslocando as coisas de lugar, e buscando dizer algo novo?

Nilton Resende: Não sei se conseguimos dizer algo novo. Às vezes (ou geralmente), dizemos a coisa velha, que está sob o tapete, que está mofando dentro das casas. Porque o artista trabalha também com o redizer, porque as questões humanas parecem ser sempre as mesmas. O ser humano é sempre o mesmo – mudam os acidentes, mas a essência é a mesma. São mas mesmas dores, as mesmas alegrias, as mesmas fomes, as mesmas paixões, os mesmos afetos, mas mesmas dúvidas, a mesma busca de infinitude, a mesma efemeridade. Acho que, em vez de o artista buscar dizer o novo, ele deve buscar não temer. Aí, sim, ele dirá algo, algo que valha a pena ser visto, ouvido, lido. Um artista não deve deixar o medo ou a censura dirigirem sua criação. Para mim, o artista é aquele que pega o tapete embolorado e bate ele na parede, sem se importar com a bronquite que vai causar no vizinho.

 

 


1 comentário

  1. OI !…NILTON.. ADOREI tudo.!!!. deixemos a bronquite do vizinho apodrecer de indiferença.. todos nós somos egoístas uma vez na vida …. somente , com a audácia e com o não temer de transformar o sentimento em arte o artista poderá dizer algo! ACREDITO NISTO! de olhos fechados.. o artista , paga o seu preço deixando que seus pés se afoguem na macarronada enferrujada!!.. é tanto ferrugem , que ele muitas vezes se AFOGA !! TREME!! ESTREMECE!!..bater a poeira do tapete e dar a volta em volta de si… é também extremamente saudável!!!.. adorei tudo ! aonde estão os seus livros??? diabolô? o orvalho e os dias?.. realmente dizer , algo novo é difícil.. mais ,se pode sentir diferentemente……..gosto da sua performance poética, QUE SE REFERE: a hóstia….PARABENS ! NILTON….. adorei te conhecer….