Claudia Lins
Companhia teatral de Petrópolis espalha a magia poética de Sylvia Orthof por palcos desse Brasil
Petrópolis, cidade imperial, é também o lar de uma trupe incrível, que une literatura e poesia, música e artes numa composição teatral da melhor qualidade. A Cia Teatro Livro Aberto, criada pela fada da literatura para infância Sylvia Orthof – que completaria 80 anos de idade neste 03 de setembro –, há 27 anos espalha poesias, risadas, fantasias e muitas histórias por esse país.
Encontro o pessoal do Livro Aberto numa sequência de ensaios para o espetáculo Historietas Contadas, que será exibido durante o seminário A viagem de um barquinho – Sylvia Orthof – do teatro para a literatura, uma produção da Editora Rovelle em homenagem aos 80 anos de nascimento da autora. As cenas inéditas revelam momentos e textos Orthofeanos. Os ensaios acontecem no centro cultural de Petrópolis, num pequeno teatro e na sala que recebe o nome de Sylvia, com cadeiras escolares, um antigo piano e um armário de madeira. Na entrada, uma foto da escritora sorrindo.
“Olê mulher rendeira… mulher rendá”…
Os versos musicados revelam um pouco mais sobre o universo da mulher que tecia palavras e pontos que se transformavam em poesias. Um universo no qual o ator Fernando Vianna transita com propriedade há 27 anos. Ele, que integra a mais antiga formação do Teatro Livro Aberto, desde sua criação em 1985, conta que o grupo foi criado por sugestão da própria Sylvia, e nasceu com a proposta de levar para o palco os textos literários da autora.
“Bendita é a risada e a gargalhada
Salve a justiça e a liberdade”
Este trecho de A de Alegria traduz o espírito da companhia criada por Sylvia, uma trupe sempre pronta a levar a magia da literatura para crianças, adolescentes, leitores e espectadores de todas as idades.
“A ideia do Livro Aberto era poder montar uma companhia que se apresentasse em qualquer lugar, com cenários carregados em caixas e malas repletas de encantamento”, recorda Vianna.
Foram 10 anos viajando com a escritora e embarcando nas viagens literárias mais criativas e inusitadas possíveis. Juntos, percorreram de Petrópolis até Uberaba, indo parar na fronteira do Brasil com a Argentina, até fizeram temporada na Alemanha.
O grupo acompanhava a escritora por diversas bienais e turnês literárias pelo país. Em 1991, na Jornada Literária de Passo Fundo, ao apresentar as histórias Luana Adolescente Lua Crescente, Se as coisas fossem Mães e Deu a Louca em Ervelina, acabaram emendando uma série de apresentações e esticaram a viagem por dois meses de trabalho.
“Sylvia era uma mãezona, colega, hiper disciplinada. Aprendi a ser cidadão ouvindo o que ela dizia. Tem texto que falo há quase 30 anos e sempre acabo enquanto ator descobrindo uma dimensão maior. Ainda consigo, brincando com as palavras, descobrir tantas coisas através do texto dela, nesses recadinhos que ela mandava nas entrelinhas, por isso a sinto cada vez mais viva no universo da poesia, me inspirando e inspirando outras pessoas”, diz o amigo Fernando Vianna.
Vivendo a garimpar textos Orthofeanos para compor espetáculos, o ator admite ainda se encantar com o deslumbramento das pessoas ao se depararem pela primeira vez com o universo de Sylvia, que além de tratar criança como ser pensante, produzia uma literatura inteligente, que respeitava muito o público infantil.
“Bem humorada, divertida, maravilhosa contadora de histórias“, assim me apresentam Sylvia Orthof, como todo leitor que admira sua obra adoraria imaginá-la.
Renato Resende, músico e compositor do grupo, entrou para a Cia Livro Aberto há quatro anos, substituindo um ator no espetáculo O Cavalo Transparente. Não conviveu com a autora, mas admira sua obra e destaca a musicalidade presente em cada verso ou texto.
“Cada vez que lemos Sylvia, reconhecemos novas facetas de sua obra. Ela tinha o lúdico e o profundo, ao mesmo tempo que revelava uma completa noção musical. Nas histórias que criou, quando descrevia na marcação de texto: ‘aqui entra um samba’, está lá a batida do samba“, explica o compositor.
Resende classifica a obra Orthofeana como profundamente inspirada na música. Para ele, os textos de Sílvia possuem métrica, melodia, além de serem compostos por palavras repletas de sonoridade e ritmos musicais. O carnaval era uma referência para seus textos, com palavras carregadas de alegorias. E como sabia brincar com as rimas e palavras…
“A poesia é uma pulga
De pular não tem receio
Adora pular na escola
Só na hora do recreio”
“Era uma diretora muito generosa e acreditava que qualquer pessoa tinha algo de melhor para oferecer. Se apoderava das possiblidades, criava potencialidades para os outros e adequava a literatura à realidade”, assim reconstrói Fernando Vianna a imagem da amiga e autora, que há 27 anos interpreta.
Do tempo que conviveram juntos restaram boas lembranças, como o aconchego dos ensaios na casa de Tato, marido do segundo casamento da autora. Eram momentos regados a lanchinhos, onde Fernando podia contracenar com a diretora, ver nascer suas criações, ler em primeira mão seus textos. Sylvia com seus bloquinhos de anotações, suas caixinhas de ideias, onde guardava pérolas para futuros projetos, Sylvia elétrica ao telefone, revelando novas poesias, personagens que surgiam de um mundo encantado onde ela possuía passaporte livre.
Lembranças de Sylvia
Fernando está presente em todos os sete espetáculos encenados pelo Cia Livro Aberto, grupo que reúne um elenco de 17 pessoas. “Tenho um mar de textos na minha cabeça, ela me deixou a inspiração da poesia, o brincar com a própria vida, me ensinou que nada é tão sério. Ao mesmo tempo que tinha os pés no chão, vivia com a cabeça nas nuvens, deixava as portas abertas para a imaginação. Sílvia me ensinou que viver vale, que todas as experiências valem e que sonhar e criar é fundamental para viver”.
Tudo é faz de conta e faz deconta é tudo
Com 152 textos publicados numa carreira meteórica na literatura infantil, se levarmos em consideração que Sylvia começou a escrever livros com 48 anos e morreu aos 65, sua obra pode ser considerada altamente recomendável para crianças e adolescentes de todas as épocas, embora seus textos não circulem com a mesma força de sua importância e contemporaneidade. Ainda existem muitos leitores a serem conquistados, educadores que precisam ser apresentados a incrível obra dessa fantástica escritora, e por isso, o Cia Livro Aberto, continua adiante, levando espetáculos para temporadas nas escolas, maratonas da rede Sesc, jornadas literárias.
As lembranças que inspiram o grupo a levar adiante a obra de Sylvia, também motivam novos integrantes como Ranta Garcia, professora de literatura infantil e atriz. Ela, que entrou para o Cia Livro Aberto há dois anos, para fazer a produção do espetáculo Lustrosa, a cantora Misteriosa, hoje integra o elenco de outras histórias dramatizadas, incluindo o inédito Historietas Cantadas.
“As lições que herdamos de Sylvia, a partir do que nos conta Fernando, é essa noção clara de ética nas relações humanas, o clima de amizade e generosidade que permanece até hoje no grupo”, traduz a atriz.
Nos mares da fada sereia
Lá se vai o barquinho Orthofeano navegando há quase três décadas, e o grupo prossegue com o mesmo vigor e desejo de inovar em sua produções, como viveu sua criadora, rendeira de uma obra de mais de uma centena de livros, que escrevia todos os dias, imaginando histórias que ninguém ousava imaginar. Histórias de tias destrambelhadas, bruxas atrapalhadas, luas gordas ou fininhas, ventos ventosos e fadas fofas.
“Andar andei
Por muitas terras plantei
a semente do sonhador”
“Se eu me for, vou de bagagem
Sem ter mala e compromisso
Vou de anjo sem ter asas,
Vou morando sem ter casa,
Vou medir o infinito”
E foi assim, num dia desencantado de 1997, que Sylvia Orthof fez as malas e partiu. Foi aprontar magias no céu das histórias. Dias antes, enquanto enfrentava uma árdua batalha contra o câncer, ainda produzindo seus textos e acompanhando os ensaios de Zé Vagão da Roda Fina, escreveu um lindo poema, que foi lido para os amigos no dia de sua despedida.
Post Scriptum, o último poema, é parte do espetáculo que o Cia Livro Aberto exibirá no seminário em homenagem a Sylvia, em setembro, no Rio de Janeiro. Ver este texto musicado foi ao mesmo tempo um privilégio e uma das emoções mais bonitas que a literatura me proporcionou.
Quando um livro se adormece
Se termina, se esquece,
O tempo vai e se avoa!
Das palavras fiz um ninho
E cantei desafinado,
Mas o canto, mesmo errado,
É cometa em céu da boca
Cometi esse escrito,
Ai doideira e maluquice
Fiz cochico, diz-que-disse,
Me virei pelo avesso!
Todo fim é recomeço,
Todo pouco é o bastante,
Toda linha de escrita
É um traço de horizonte!
Já é tarde, vou me embora.
Toda a vida é tão memória de mil maneiras contada!
Só ousei certa saudade
Que passou no que me lembro.
Toda estrada é faz de conta,
Por isso que a poesia apronta
Sempre uma paisagem.
Boa Viagem!
Bravo!!!!!
Bravo!!!!!
Sylvia Orthof eterna.
Me sinto muito, muito feliz em fazer parte desse mundo orthofeano junto de pessoas queridas, talentosas e generosas.
E me vejo ainda na obrigação de citar todos que hoje transformam a Cia Teatro Livro Aberto numa linda realidade:
Além de nós, Fernando Vianna, Renata Garcia, Renato de Resende ja citados acima, temos Vania Moreira, Rosa Muller, Simone Gonçalves, William Esteves, Guto Menezes, Marcio Negócio, Fabio Branco, Cristiane Carvalho, Luciana Fortunatto, Bernardo Passos, Fred Justen e Felipe Cardoso.