Por Simone Cavalcante
A palavra se lança como um projétil alcançando o certeiro alvo: a experiência literária. O trocadilho tem uma explicação. O escritor Pablo de Carvalho atua há mais de 10 anos na área de segurança pública, mas quando o assunto é ficção é com muito mais força que a inquietude dos escritos do romancista estilhaça certezas e verdades de um mundo cada vez menos sensível. Autor de quatro romances (dois premiados), ele faz parte do novo momento da literatura brasileira, ao lado daqueles escritores capazes de enxergar sentidos até mesmo na combinação infinita de contrastes e opostos
Mundo Leitura: O que o levou ao exercício literário?
Primeiro, moleque ainda, eu desenhava quadrinhos. Tinha um traço, com muito esforço, razoável, mas nada mais que isso. Na verdade, aquela era a primeira manifestação da necessidade de criar ficção; algo que veio antes de escrever: como só o desenho estava acessível, sobrou pra ele. Depois, fui compor letras pra bregas e sambas junto com uns amigos lá do subúrbio em que cresci, o bairro do Ouro Preto, em Maceió, mas tudo muito em tom de brincadeira. Já adolescente, mais apresentado à palavra, e diante das primeiras angústias da vida, comecei a escrever poemas, mas também não me senti totalmente em casa ao escrevê-los. Enfim descobri a prosa, e aí fiquei calmo, encontrado, confortável. Além dela, faço crônicas e letras pra música.
Mundo Leitura: Como se deu a escrita de seu livro de estreia, Canteiro de Quimeras?
O Canteiro de Quimeras foi um romance escrito quando eu tinha entre dezoito e dezenove anos, aproximadamente. É um romance psicológico, com um jeito de fazer literatura que eu não uso mais. Escrevei-o com muita insegurança, pregado num estilo exagerado, mas mesmo assim tudo nele me agrada muito, pois pertence ao seu tempo, e tem lá suas virtudes. Pretendo, talvez depois da aposentadoria, reescrevê-lo, com mais simplicidade de estilo, mas sem alterar o enredo.
Mundo Leitura: Qual o ponto de partida do romance Eunuco?
O Eunuco foi criado a partir de um homem solitário que morava numa casa velha lá na rua Cônego Machado, em Maceió. Observava-o sempre, ele por lá debruçado na porta quando eu passava rumo à faculdade. E então, do nada, o livro me veio à cabeça e eu o escrevi. Tinha meus vinte anos. É um pequeno romance, talvez uma novela. Acho seu estilo também muito carregado, mas adoro o personagem; tenho uma tremenda simpatia por seu sofrimento e pelo jeito engraçado com que ele vive seu drama. Gosto muito, também, do prefácio do saudoso poeta Paulo Renault e das ilustrações de Pedro Cabral. Também hei de reescrevê-lo, mais simples de estilo.
Mundo Leitura: Como se deu o processo de construção da personagem Iulana?
Considero Iulana minha estreia na literatura do ponto de vista da assinatura. Isso porque, a partir dela, eu sempre escrevo do mesmo jeito: com total liberdade poética, de estilo e enredo, e sem compromisso com nada mais que a sinceridade da imaginação. Iulana é uma personagem que concentra toda a minha admiração pelas coisas que acho mais bonitas na vida: a mulher, a música, o mistério da existência etc. O livro é uma libertação das interpretações restritas da realidade que eu me impunha, e é uma declaração de amor à alma feminina, à estética das coisas, aos traços sutis e deslumbrantes daquilo que chamamos de Deus. Iulana é isso, minha joiazinha, e eu trago esse livro guardado no coração como num cofre.
Mundo Leitura: De que modo a observação da realidade dialoga com sua obra ficcional?
Adoro essa pergunta porque ela vai à essência de meu acerto ou de meu erro como escritor até este momento – o tempo dirá, mas já adianto que fracassar é, também, uma maneira de se aproximar da verdade; então, vivamos sem essa paranoia. Acho que essa grande ilusão chamada realidade não pode ser objeto de diálogo, mas de palestra, porque tudo pode ser visto sob vários ângulos complementares que, infelizmente, temos o hábito de tratar como excludentes. Vou simplificar: uma das razões de os jurados terem concedido o prêmio final a Catracas Púrpuras é que ao tratar, por exemplo, de uma cena de homicídio, o livro se debruça sobre ela com olhares ao mesmo tempo técnico-investigativos, poéticos, jornalísticos etc. Esse efeito compartilhado cria um cenário perturbador. Trata-se de um exercício de diplomacia; conciliar tudo: o realismo ao lirismo à ciência à religiosidade etc. Então, a realidade dialoga com minha obra com várias vozes. Aliás, essa é uma grande lição da física quântica: múltiplas possibilidades abstratas se juntando numa coisa só. Desde Iulana, interpreto a realidade como algo que vai da mais absoluta brutalidade à mais sutil poesia, numa escala infinita que existe simultaneamente. Uma tremenda ilusão, uma obra magnífica é a realidade, e não podemos nos limitar a vê-la como algo meramente natural, ou puramente místico. Nada disso. Ela é tudo ao mesmo tempo, no meu modo de ver as coisas. O grande desafio é criar um livro que, tendo essa intenção, não seja ininteligível; um livro que seja perfeitamente compreensível a qualquer leitor; é entender que o destinatário da obra, o leitor, é a coisa mais importante. O escritor é secundário.
Mundo Leitura: Se você pudesse estabelecer um traço de identidade entre seus trabalhos, como os classificaria?
Antes de Iulana, esse traço inexiste. A partir dela, seria esse esforço pra junção de coisas “inconciliáveis” de que falei na pergunta anterior. A liberdade total de criação é outro traço, mas é mais como uma consequência disso tudo.
Mundo Leitura: Recentemente você foi contemplado com o Prêmio Funarte de Criação Literária. Qual a sensação de ser valorizado profissionalmente como escritor?
É muito bacana. A gente sempre prepara (dia depois de dia) o espírito pra viver a solidão dos escritores, o ostracismo dos escritores, o abandono dos escritores. Acho que isso deve ser feito sem drama demais. É uma “mera” opção objetiva: vou escrever coisas não comerciais, portanto não posso viver chorando por um isolamento que é fácil de antever. Mas, quando o cara é acostumado a levar pancada e ganha um cafuné, o coração vira manteiga.
Mundo Leitura: Como você conciliou o cronograma do projeto da Funarte com o processo de criação de Catracas púrpuras?
A vida policial me ensinou a trabalhar debaixo de pressão. E, como vivo muito na rua, entre investigações e diligências, adquiri o costume de criar um roteiro mental pras coisas que vou escrever, e deixar tudo numa “gaveta”, esperando o computador. De modo que, muito antes de o prazo terminar, o livro já estava concluído, embora sem forma definida, na minha cabeça. Então não houve problemas quanto a isso; achei o prazo confortável. Ademais, eu já estava matutando esse livro há muitos anos; ele era um amigo velho, era muito familiar mesmo antes de cair no papel.
Mundo Leitura: Depois de escrita, a obra Catracas Púrpuras foi selecionada para ser publicada pela Funarte. Como você recebeu essa dupla conquista?
Emocionado até os ossos. Primeiro porque houve quase seis mil concorrentes, do Brasil inteiro, então a parada era muito dura. Depois porque eu fui o único nordestino dentre os quatro vencedores, e poderia representar Alagoas, Pernambuco e Paraíba, três Estados de meu afeto, diante do país inteiro. Além disso, porque mostra que o jeito “estranho” com que escrevo não é desarrazoado. Não posso deixar de acrescentar minha admiração pelos outros três livros vencedores. Recebi-os e são obras impressionantes, de grandes escritores. Fico muito contente por estar junto deles.
Mundo Leitura: Você acredita que os editais públicos de literatura têm estimulado o surgimento de novos escritores? E o que falta, na sua opinião, para essa produção circular melhor no país?
Acredito sim, e muito, mas é preciso que os escritores entendam que a derrota nesses editais não significa falta de qualidade; os editais são apenas um caminho dentre inúmeros. O próprio Fernando Pessoa, gênio acima dos gênios, perdeu um concurso desses da vida. A Funarte, daqui a um ano, disponibilizará, para download grátis, os livros vencedores. Acho que o caminho para a circulação é esse. Ler em papel deve ser como tomar um vinho raro: exceção. Cada vez mais a leitura digital ganha espaço, e isso é ótimo – sei que choverão discordâncias; respeito-as, mas paciência. Eu mesmo prefiro carregar meus livros num tablet, lê-los a qualquer hora e em qualquer lugar, com conforto visual total. Deixo o papel só pra momentos especiais, numa rede de balanço e tal. Mas, com o tempo, até esse saudosismo deixará de existir. E então os livros serão todos digitais. Acho muito bom. O que vale é o mundo das ideias, que já é virtual desde o primeiro pensamento levantado na Terra.
Leia o trecho de abertura da obra Catracas Púrpuras
VINHETA
“Dois olhos, injetados de pura raiva, enquadram a vítima.
Mas a raiva, coisa densa e externa, está apenas nas sobrancelhas que se juntam em compressão, e nas pupilas sobre as quais as pálpebras caem diagonalmente: dentro do homem o ambiente é de calma. É tudo e o mais em silêncio e quietude. Em torno ao coração parece haver uma neblina, ou garoa de doce umidade, de manhã serrana, embora faça meio-dia em ponto no tempo de fora.
O antebraço se contrai e enverga o indicador, que atrasa o gatilho – apesar de o movimento ser à retaguarda, passa tanta sensação de avanço que nos confunde ver e sentir.
O cão, que tem forma de cavalo e aspecto de cão, segue em marcha à ré a intenção do irmão gatilho, de quebra girando o tambor como que com a ponta da pata.
De repente o esforço se detém. O gatilho para a milímetros do guarda-mato. O cão, que tem aspecto de cavalo e forma de cão (ou será o inverso?), oscila em gesto de touro estudando.
Uma pupila, em forma de túnel, mantém a visada perfeita; a outra, coberta da pálpebra, está desligada. O dedo avança (ou retrocede?) e o cão chifra o percussor que espeta a espoleta que incendeia a pólvora que explode e expande gases que empurram o projétil pelo cano fora, e o projétil (agora, desaceleremos) avança com sua cena para o parágrafo abaixo.
O projétil, nave de chumbo com astronauta remoto, gira e perfura o ar, como uma broca (e isso, destoando quase deste jeito de fazer literatura, é literalmente assim), preciso e espiralado, desfazendo-se de resíduos e fogo e fuligem e som, purificando-se a girar linearmente até entrar pela nuca de um homem cujos olhos só se esbugalham de susto quando o projétil já lhe extrapola os tecidos pelo orifício de saída.
Deixando para trás o corpo que se ajoelha, e antes mesmo deesse corpo ajoelhar-se, o projétil, rajado de sangue e polvilhado de fragmentos ósseos, choca-se contra um poste de concreto e ganha forma de cogumelo.
Esse cogumelo, uma vez rebatendo do poste – bem em frente à lente da câmera –, é cercado por uma expansão de cimento, sangue, chumbo e farpas de ossos cranianos. Justo nesse momento, justo quando as forças e as coisas se afastam e crescem para cessar, paralisemos a cena e enviesemos, saindo do nada, o nome Catracas Púrpuras.
Boa leitura.”
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