PINTORA

#PALAVRAJOVEM  Série de crônicas  por Severino Rodrigues

Foto: site Pixabay

Foto: site Pixabay

Repare nos traços, no esforço, no rosto da artista. Decidida, ora hesita. Que cor escolher? Esta. E volta a pintar com todo cuidado. Pequena, mas tão inteligente. Um senhor está sentado ao seu lado. Ela, com a folha apoiada no pequeno caderno sobre as pernas, desenha, apaga, pinta. Acabou de chegar do colégio. Suada, com a fardinha toda suja. Normal para a idade. Depois de passar uma tarde inteira brincando com os novos coleguinhas e aprendendo a desenhar e a colorir.

Mamãe, quando eu crescer, eu vou ser pintora! Falou ao descer do transporte escolar. A mãe sorriu. Aquele sorriso de alguém que não quer conversar. Um sorriso não sorriso. Olha, não tá bonito? Mostra a pequena a sua mãe. Lindo. Responde. Era uma boneca. Seria a Emília? Devia ser. Abraçou o desenho, sua primeira grande obra-prima. Viriam outras depois. Várias. Seria sucesso. Mas, às vezes, os sonhos caem no esquecimento. Perde-se um grande artista por falta de um sincero sorriso. Tio! Disse a menina, soltando a mãe e correndo para o banco de pedra onde o tio-avô estava sentado. Eram vizinhos.

Pegou o material da mochila. Pouco depois, já segurava com toda a força o lápis. Ele não iria fugir. Ela não queria borrar o desenho. A cor não podia passar da linha, assim como a professora disse na escola. Tia… Tia alguma coisa. Tia que não era tia, mas era tia. Não era um desenho apenas que ela fazia. Eram três. Três figurinhas. Trabalhava com cuidado triplo. Se borrasse um, os outros ficariam feios também. Era um verdadeiro trabalho renascentista ou expressionista. Acabou.

Guardou com cuidado o último lápis de cor que utilizara para pintar uma das suas primeiras obras de arte. Aquela que ficaria na memória para sempre ou que seria esquecida em pouco tempo. Fechou a caixinha dos lápis. Caixinha de papel que dali a alguns dias ficaria suja, rasgada, remendada e que para não perder seus novos amigos deveria ser substituída por um estojo. Colocou a caixa e o pequeno caderno na mochila nova, que a mãe comprara uma semana antes do início das aulas e a fizera passar uma hora e meia na fila da livraria por deixar para fazer as compras de última hora.

Soprou o desenho. Passou a sua mãozinha com cuidado. Ajeitou a ponta da folha de papel sulfite. Pronto! Olhou para o tio-avô ao seu lado, que, calado, observara tudo atento. Ele sim, iria sorrir e fazer daquela pequena garotinha de cabelos escuros, presos num rabo de cavalo, uma verdadeira e reconhecida artista. Olha, não é bonito? Fui eu que fiz.

O senhor pegou o papel das mãos da menina. Observou o desenho. Ela explicou. Sou eu, papai e mamãe. A artista. O pai dela. E a mulher de sorriso não sorriso. Traços infantis. Fortes. Imaginários ou reais?

Muito bonito! Falou o senhor com um sorriso. Ela pegou de novo o desenho. Colocou a mochila nas costas. Entardecia. Devia ir para casa. Tchau, tenho que entrar! Tá certo. Quando eu crescer, eu vou ser pintora! Vou desenhar tudo muito bonito! Adentrou em casa, batendo o portão de ferro.

Anoiteceu. Estava cansada. Acabou adormecendo logo. E o seu grande quadro escorregou da mãozinha que não o queria largar e voando foi parar embaixo da cama.

A coluna Palavra Jovem é publicada quinzenalmente em Mundo Leitura, toda quinta-feira.severino2

O autor, Severino Rodrigues, é escritor, professor e mestrando em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Destaque no Concurso Rubem Braga de Crônicas da Academia Cachoeirense de Letras, publicou pela Cortez Editora, em 2013, o suspense juvenil Sequestro em Urbana.