Nasce uma sala de leitura

Sobre a emoção de presenciar o primeiro encontro entre crianças e os livros  

Por Claudia Lins

Autora Claudia Lins com os irmãos Eloá e Paulo Ricardo

Esses dois que aparecem ensaiando um sorriso nessa foto ao meu lado são os irmãos Eloá e Paulo Ricardo e como muitas crianças que conheci no último dia 16, durante a inauguração da Sala de Leitura SOL & LUA, na Associação do Peixe-Boi, em Porto de Pedras, vivenciaram a experiência de ter um livro nas mãos pela primeira vez. O novo espaço literário destinado a filhos de pescadores e crianças da praia de Tatuamunha, em Porto de Pedras, foi criado graças a ação dos colaboradores da Rede Ler e Compartilhar, um programa de circulação de acervos e formação de leitores, do qual sinto muito orgulho em fazer parte. Mas a história que quero aqui compartilhar é a do primeiro encontro entre crianças e o mundo mágico dos livros.

Os irmãos Eloá e Paulo Ricardo foram os primeiros a chegar a Associação do Peixe-Boi, na hora marcada para a oficina literária gratuita do projeto Ler é Minha Praia, no último sábado.  Muito tímidos, ficaram quietinhos a maior parte do tempo, comportados diante daquela experiência para eles até então desconhecida. Quando ofereci um livro, seus olhares reagiram assustados, pareciam estar diante de um bicho, nem queriam pegar. Não sabiam o que fazer com o objeto desconhecido.

Depois de alguns minutos de oficina e de terem participado das brincadeiras, numa sala lotada, com outras 30 crianças, ainda assim, eram como peixes fora d’água. No entanto, ao final das dinâmicas, após o lanche, ficamos sozinhos e os convidei para ler junto comigo meu livro: Os três porquinhos do Agreste. Fizeram uma carinha resistente, como se dissessem: “não sabemos ler”. E eu agi do jeito que sempre faço quando uma criança me diz que não sabe ler. Peguei o livro e fui folheando, mostrando as ilustrações e os convidando a ler as imagens que surgiam a cada página.

Lendo Os três porquinhos para Eloá e Paulo Ricardo

Os irmãos sentiram dificuldades em interpretar algumas imagens, aliás uma cena que vi repetir-se naquele dia com uma porção de outras crianças, muito maiores que eles. Crianças sem qualquer referencial literário, com dificuldades para imaginar ou juntar corretamente as cenas de um quebra-cabeças.

Àquela altura dos acontecimentos os irmãos Eloá e Paulo Ricardo começavam a perceber que a tal novidade feita de papel era um convite a um mundo diverso e ao mesmo tempo rico em possibilidades. Acho que por isso decidiram embarcar livres na brincadeira, embora preservassem aquele jeito desconfiado, de quem não está acostumado a rir à toa ou brincar por brincar simplesmente.

Eu lendo para os irmãos Eloá e Paulo Ricardo

Os dois, vistos assim tão juntinhos, me fizeram lembrar os irmãos João e Maria dos contos de fadas, perdidos na floresta, curiosos diante da tentadora casa de doces da bruxa. E até que podiam se passar pelos personagens daquela história, vestidos em suas roupas humildes, com sandálias de borracha sujinhas e seus olhares embotados pela realidade da vida, que apesar do mar azulado a se derramar a porta de sua casa, os tem reservado dias bastante difíceis, como só mais tarde pude descobrir. Um capítulo, aliás, que não cabe nessa história de felizes encontros.

Mas naquele momento, diante do livro, os irmãos Eloá e Paulo Ricardo pareceram se esquecer da vida real que os esperava lá fora, quando voltassem para casa. Logo estavam se divertindo e os vi sorrindo pela primeira vez desde o início da oficina do Ler é Minha Praia, quando passaram quase todo tempo caladinhos.

Paulo Ricardo fez como o porquinho Zé, imitou os passarinhos, depois junto com a irmã imitou o vento soprando forte, mas nenhum dos dois soube reconhecer o personagem lobo mau, pois nunca tinham visto um lobo antes. Também não reconheceram o tapete voador, nem a roupa de astronauta, acessórios ilustrados na imaginação do personagem Chico, o porquinho leitor.

O irmão achou que lobo não podia ser primo de porco, mas Eloá aceitou a ideia de que em história, tudo pode. Então disse a eles que poderiam voltar naquela sala de leitura para sonhar e voar quantas vezes desejassem, pois os livros nos dão asas para irmos onde quisermos.

Quando acabamos de ler o livro juntos, Eloá fez questão de nos abraçar, a mim e a Simone Cavalcante, amiga autora e co-realizadora nessa aventura de levar a praia da leitura para crianças do nosso Brasil. Ficamos emocionadas com o beijo e a ternura da tímida garotinha. Então pedi para ver quanto ela calçava, na expectativa de levar uma sandália nova para ela, quando voltarmos lá da próxima vez. De tão felizes, nem notamos os dedinhos de seu pé tão machucados, pois afinal ainda desfrutávamos da atmosfera mágica da leitura…

Ao nos despedirmos, embrulhei o livro que havíamos lido e que era meu, em duas camisetas que a Flávia Rêgo, presidente da Associação do Peixe-Boi, resolveu dar aos irmãos de presente. Improvisamos o embrulho numa sacola de supermercados e esse ficou sendo o nosso segredo. Quis deixar um pedaço da alegria da infância na vida deles. Prometeram que leriam a história um para o outro, mesmo sem saber ler. Prometemos voltar com roupas e mais carinho da próxima vez.

 

Ficou linda e habitada por muitas histórias a Sala de Leitura SOL & LUA. O nome, aliás, é uma homenagem a dois peixes-boi que agora nadam livres no litoral nordestino, graças a ação conservacionista de gente que acredita que é possível habitar o mundo em harmonia com a natureza. E eu Simone encerramos a agenda do projeto Ler é Minha Praia em Alagoas com muito orgulho por poder ajudar a inaugurar este espaço de vida e sonhos.

livros doados pela Rede Ler & Compartilhar

As crianças de Tatuamunha em Porto de Pedras ganharam um espaço colorido, cheio de motivos para que possam voltar e sonhar outras vezes. E nós teremos um desafio pela frente. Prometemos retornar em fevereiro para uma formação com as voluntárias que trabalharão a leitura na comunidade. Nesse trabalho com a Associação do Peixe-Boi, toda equipe envolvida com as ações de leitura terá de experimentar o papel de jardineiros, agricultores e marceneiros, a plantar, semear e esculpir com livros novas perspectivas e horizontes.

Bem pertinho da cidade onde nasceu Aurélio Buarque de Holanda, muitas crianças talvez ainda cresçam sem saber que os livros existem para que elas possam morar neles.  Mas eu e Simone saímos dessa experiência com uma chama viva em nosso coração: a de poder contribuir para que outras Eloás e Paulos Ricardos daquela comunidade tenham o direito a crescer e a sonhar com um futuro de possibilidades. E que as imagens e toda as cores dos livros que agora preenchem as paredes dessa nova sala de leitura possam no futuro colorir de vida a existência de muitas outras pessoas por ali.

Equipe Ler é Minha Praia e Rede Ler & Compartilhar com Flávia Rego Presidente da Associação do Peixe-Boi

A educadora Suely Martins, Flávia Rego Presidente da Associação do Peixe-Boi e as autoras Claudia Lins e Simone Cavalcante

Um pouco + sobre: O dia em que os livros entraram na vida das crianças de Porto de Pedras

O projeto Ler é Minha Praia Brincando com os Livros Infantis é resultado da Bolsa de Fomento à Circulação Literária, edital do Ministério da Cultura, MINC, e Fundação Biblioteca Nacional. Está percorrendo destinos em Alagoas, Sergipe e Pernambuco, num total de 12 oficinas literárias gratuitas para crianças e educadores, fazendo circular a obra das autoras Claudia Lins e Simone Cavalcante. 

Desde que foi criada em outubro de 2015, a Rede Ler e Compartilhar já implantou 10 cantinhos de leitura e distribuiu mais de 300 livros infantojuvenis para atender a crianças e adolescentes da escola EMPEF de Taquaras, na zona rural do Espírito Santo e Associação do Peixe-Boi, em Alagoas. Coordenam as ações desse programa colaborativo, a autora Claudia Lins e a bibliotecária e fada da leitura, Rosa Cleide Marques, a Rosinha, do Colégio Marupiara de São Paulo.

Sala de Leitura Sol & Lua

A criação desse novo espaço de leitura no litoral norte alagoano só foi possível graças ao desprendimento de pessoas que resolveram doar livros novos e custear a compra do mobiliário em madeira MDF. Gente como o empresário Emmanuel Malta, da EVM Representações Ltda. de Maceió, o Colégio Marupiara de São Paulo, o Programa Leitura Viva da Escola Espaço Educar e os autores Lúcia Hiratsuka, Jonas Ribeiro, Belise Mofeoli e Simone Cavalcante.