De Claudia Souza
“Porque está justamente na narração a experiência extraordinária que a criança realiza com o livro, sendo este (o livro) sua mais eficaz e refinada expressão cultural (ou ao menos deveria ser assim)”.
Giovanna Zoboli, in “O desenho preciso”, publicado na Revista Emilia
Um dia, na escola onde trabalho, aproveitei a “deixa” de uma professora e contei para uma classe – usando um recurso simples, a dobradura em papel – a história de um menino (dei o nome de um deles) que queria ver o fim do mar e assim constrói um barco e sai em viagem. A construção do barquinho de papel acontece diante dos olhos encantados das crianças e passa pela casa, depois pela montanha, pelo chapeuzinho de marinheiro, pelo mapa, pelo copo onde ele mata sua sede enquanto trabalha… até chegar ao barquinho, que navega levemente entre as ondas/cabeças dos ouvintes. Para seu deleite.
A história é trágica porque o mar, enraivecido, acaba empurrando o barquinho contra as rochas (papel embolado) e ele se rompe (se rasga), depois afunda. Que tristeza. Tudo que sobra, depois dos duros golpes no barco (cortes verticais dos dois lados e em cima) é a blusinha de marinheiro do menino, que surge do desdobramento do barquinho“quebrado” e afundado. Será que ele morreu? Alguns olhinhos brilham, outros são mais confiantes:
– Claro que não, ele nadou e conseguiu chegar até a margem!
E eu arremato, sorridente:
– É claro que o Emanuele não morreu, olhem só ele ali. Conta pra eles, Emanuele, como você fez.
E a coisa acaba em gargalhadas, naquele lugar invisível que as crianças – e os “adultos atípicos”, como define William Corsaro – amam habitar. O lugar do faz-de-conta refletido na realidade compartilhada.
Depois da contação, todo mundo quis aprender a fazer o barquinho de papel. Eles que, no fim das contas, em meio a tantas atividades escolares, usam pouco a habilidade manual (salvo algumas raras experiências de arte). Fizemos em roda, todos juntos, num ritmo de grupo, isto é, respeitando os mais vagarosos. Depois foram pra mesa “decorar” os barquinhos. Cada um mais lindo que o outro.
Preciso dizer que é uma escola muito rica, em todos os sentidos. Sobram recursos. Sobra material. Mais que sobra, tudo abunda. Muita tecnologia (telões interativos em todas as salas, computadores, I-pads, todo tipo de máquina e instrumento que se possa imaginar como recurso pedagógico). Cada passo é exposto pelos corredores em fotografias e inúmeros registros da vida de cada classe. As crianças produzem muito, contando com toda esta abundância. A expectativa dos pais, embora bem-intencionada, é alta demais e a escola precisa responder, enquanto escola privada.
Depois de alguns dias, chego ao trabalho e a professora meio-reclama, meio-elogia:
– Esse tal barquinho virou uma febre na turma. Toda hora que olho tem um fazendo barquinho de papel.
Observo em volta e vejo montes de barquinhos pela classe, de todas as cores e tamanhos. Ela me conta que no pátio, botam os barquinhos pra flutuar nas poças. Levam e trazem de casa, trocam, inventam novos desenhos neles, acrescentam personagens… Virou mesmo “uma febre”, como álbuns de figurinha, brinquedos “da moda”, adesivos, etc, mesmo sem, é claro, os potentes recursos de publicidade com que estas manias contam.
Não encontro o que dizer e só mexo os ombros. Sou velha demais pra querer, ou pra achar que posso, mudar o mundo. Escola então… Instituição imutável, fundada no controle (como dizia Goffman sobre os hospícios, os conventos e as prisões). Mas no meu íntimo sorrio, feliz da minha micro-política (Deleuze e Guattari ficariam orgulhosos de mim). A professora, imersa que está neste estado de coisas, dificilmente vai perceber que o que “virou febre” não foi o barquinho de papel em si, mas o contexto no qual ele foi gerado. Era isso que se estava multiplicando na turma. Que contexto era esse? E o que tem a ver todo esse caso do barquinho de papel com o livro infantil atual?
Vamos por ordem: que contexto.
Antes de tudo, o contexto era de reciprocidade. Estávamos todos juntos naquela contação. Adulto e crianças envolvidos no relato com a mesma paixão. Humanidade. Calor humano, ou como se quiser chamar.
Depois o aspecto lírico e emotivo do conto, o que fez com que fosse, mais que visto ou escutado, fantasiado, “imajado” e imaginado pelas crianças.
Um outro componente claro daquele contexto era a lentidão, seja na voz que no processo de ir dobrando. Os significados iam surgindo um a um, sem pressa nenhuma. Sua criação dependia metade das formas simples das dobraduras e metade da interpretação seja de quem conta que de quem “é contado”.
Posso falar ainda da total falta de apelo da atividade (sim, era lentamente ativa). Era um estar no mundo sem ser puxado, estimulado, incentivado. Eu não tinha nenhuma estratégia ou método pedagógico, tampouco um objetivo didático. Ao contrário, as crianças eram levadas por si mesmas porque estavam enlevadas pelo conto – como eu também estava. Pura literatura.
Tudo isso coisa rara de ser vivida pelas crianças modernas.
Acima de tudo, o barquinho de papel representava o desdobramento de si mesmo neste contexto específico e só por isto foi incorporado pelo grupo. Se eu tivesse simplesmente ensinado as crianças a fazer um barquinho de papel, como acontece com 90% dos conteúdos veiculados em sala de aula, seria até bacaninha (até porque o barquinho de papel é singelo e a dobradura é uma arte milenar) mas talvez ele perdesse grande parte de seu encanto e fosse rapidamente esquecido. Porque o brinquedo tradicional tem essa particularidade: de só “viver” dentro de um contexto que toca a Infância, que se comunica profundamente com ela. Que provoca narração. Foi o que aconteceu na nossa experiência.
E aí entramos na segunda pergunta: e o livro infantil atual?
O livro infantil vem perdendo a cada dia mais seu contexto de humanidade e, enquanto o faz, rouba da capacidade de narrar este mesmo contexto. Começou ocupando o lugar do conto oral, realizado afetivamente pela avó ao lado do fogão da cozinha ou no sofazinho da sala à luz dos lampiões. Virou o intermediário sui generis entre a criança e o conto. Até aí nenhum problema, porque ler é uma atividade salutar e prazerosa que deve ser transmitada às novas gerações – e se começa de pequeno a tomar gosto. Mas, a partir de um certo ponto, o livro infantil começou a empetrar um estranho mecanismo contra si mesmo. Foi virando mais um entre os milhões de produtos que são diariamente apresentados às crianças, na maior parte das vezes sem garantir um mínimo do contexto que interessa à sua natural complexidade.
Como produto, claro, precisou obedecer às leis do Mercado. Às duras leis do Mercado. E teve de virar “muito”.
Muita oferta. Muita variedade. Muita proposta. Muito apelo. Muita inovação (Edgar Morin fala da “inanição da inovação”). Muito pragmatismo.
Estamos já tão habituados das coisas irem se tornando produto que acabamos nos esquecendo da própria coisa. O produto a esconde, faz com que esvaneça. Na sociedade contemporânea, os objetos perdem a cor enquanto ganham muitas cores e muitos recursos. São perecíveis afetivamente, descartáveis. O livro-produto está cada dia mais ficando assim.
O livro infantil, salvo raras e honrosas exceções, vai deixando de ser livro. A criança, distraída pelo invólucro, despreza o conteúdo, que seria a história que se quer contar. É como receber um presente numa caixa de ouro. Envolto neste manto do vazio, o livro tem sido cada vez menos um objeto vivo, que quer ser lido, interpretado, conhecido. Deixa de ser a humana conversa de onde partiu. A criança dificilmente se afeiçoa a ele, porque ele não vem carregado de afeto. Dificilmente, salvo honrosas exceções (e estes graças à genialidade de seus criadores) o livro infantil moderno vira livro de cabeceira.
Entregar simplesmente um livro-produto nas mãos de uma criança é o mesmo que lhe entregar um modelo de plástico de um transatlântico de brinquedo, ao invés de construir junto com ela um barquinho de papel. Como comparar? O transatlântico é certamente “um presente melhor” . Faz muito mais “efeito”. Muita gente, mas muita mesmo, tem apostado no livro infantil assim. Em um produto que impressiona. Mas fica por aí.
Podemos, entretanto,pensar no livro infantil como possibilidade de circulação de saberes e principalmente de sentimentos. Em seu papel de ligar e de atender aos apelos inerentes à Infância. Para isto, é importante considerá-lo enquanto objeto vivo, coletivo, cultural, que traz muito mais que páginas escritas e desenhadas. Resgatar a função social do livro infantil é devolver a ele um caráter precioso de objeto de culto.
Esta ideia traz consequências importantes seja à editoria que às escolas e às famílias. Convido-os a começar por repensar o livro-barquinho de papel.
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Sobre a autora deste texto:
Claudia Souza é escritora e psicóloga com especialização em psicopedagogia, psicolinguística e educação artística. Mineira, mora em Milão há seis anos. Publica livros infantis em português, italiano e inglês e artigos em jornais e revistas no Brasil e na Itália. Pesquisadora da Infância, trabalha em projetos de intervenção cultural direcionados a crianças, entre eles o grupo ProgettoQualeGioco e o Istituto Callis Italia. Trabalha ainda na International School of Milan. (www.quemconta.wordpress.com)
Li e reli seu texto, e continuarei a voltar sempre que puder…Um texto rico em informacoes, com caminhos a ser seguido por qualquer profissional que queira realmente fazer a diferenca. Assim eu penso que deveria ser a escola, um mundo de possibilidades de promover a cidadania e despertar nos sujeitos a imaginacao, a troca de saberes, para inserí-los na sociedade como ser capaz de transformar a sociedade.Conhecedores de suas possibilidades, capacidade e responsabilidades.
Considero a escola, uma porta aberta para a transformacao da sociedade… Basta ter vontade para mudar, coragem para fazer e fazer o melhor, pelo melhor de todos.
Juçara, que feliz eu fico com esse feed-back! Você é muito mais otimista que eu em relação à Escola, isso é muito bom. Um grande abraço!