LITERATURA INFANTIL: Educação ou Entretenimento?

Por: Claudia Souza

Foto: Site da Festa Literária de Paraty – FLIP

A literatura infantil levanta várias dicotomias que ocupam consideravelmente o cenário de suas reflexões. Relação texto-imagem, texto longo-texto curto, complexidade-simplicidade, idade-atemporalidade, localidade-universalidade, forma-conteúdo, educação-entretenimento só para citar as mais aparentes. Todas discussões importantes, mas que, se não bem fundamentadas, correm o risco de virar apenas disputas, controvérsias estéreis.

Neste artigo quero me concentrar na última do meu breve elenco, que muito superficialmente poderíamos dispor assim: a que coisa “serve” a literatura infantil? Para educar ou para entreter/divertir?

Começo pela premissa de que, no senso comum, tudo que diz respeito à criança vem automaticamente associado a educação. A criança é (ainda!) vista como um vir-a-ser, alguém que deve ser moldado em função de uma série de competências e de habilidades cujo objetivo é garantir suas conquistas futuras. É como se sua sobrevivência social dependesse necessariamente de certas metas instituídas pelos especialistas, pelos donos do saber educacional. Que lhe conferem o status (ou o estigma?) de aluna.

Foto: FLIP

Na nossa sociedade adultocentrica, raramente a Infância é vista como ato, é quase sempre potência, ou seja, a criança é um ser que ainda não se concretizou e que precisa de suportes para que isto aconteça. A educação está pronta a oferecer estes suportes, enquanto reafirma o caráter da criança de “aprendiz 24 horas”.

A Cultura da Criança – suas criações, invenções, suas buscas de sentido – é pouco (ou nada) considerada, porque se está ocupado demais tentando transmitir a ela a cultura acumulada pela humanidade – que é a matéria-prima da instituição Escola. Diante de uma criança o primeiro movimento do adulto é ENSINAR. É fácil esquecer que o encontro adulto-criança é uma via de mão dupla, são dois universos que se encontram e que poderiam trocar tanto, não fosse o adulto tão egocêntrico (e ainda dizem as más línguas que é a criança a egocêntrica da vez).

Daí que o livro infantil, cujo usuário principal é a criança, não pode que “servir” a este estado de coisas, é mais um (entre brinquedos, parques, filmes…) instrumento educativo, dentro da cada vez mais abrangente e invasiva Metodologia Educacional.

No Brasil, principalmente, se se pensa só em termos de mercado editorial, a realidade que se apresenta é da Escola como principal consumidor e gestor da literatura infantil (e juvenil). O produto livro, dentro desta configuração, passa necesssariamente pelo “crivo” da educação (na melhor das hipóteses) ou da pedagogia (no sentido de perspectiva didática, instrutiva).O que torna a questão ainda mais complicada.

De fato, no Brasil não são nem as editoras, as livrarias e muito menos os pais os mediadores entre livro e leitor-criança. Basta visitar o setor infantojuvenil de uma livraria brasileira e pedir um título qualquer para escutar a resposta standard do livreiro:

– Não temos em estoque, pois não foi “adotado” este ano. Teremos de pedir à distribuidora.

Prazo: mínimo três dias para a entrega. Ou seja, o livro infantil está sumariamente ligado à “adoção”  pelas escolas, inclusive no que se refere à acessibilidade ao público. Os pais, aqueles poucos interessados em escolher por si mesmos quais livros oferecer a seus filhos, precisam se submeter a um sistema precário. A outra alternativa é deixar (mais esta) tarefa na mão da Escola.

Diante de tudo isso, a conclusão parece óbvia: o livro infantil está mesmo  “a serviço” da educação. Consequências igualmente óbvias: predomínio do politicamente correto, da literatura “boazinha”, desprovida de violência e de outras vicissitudes humanas, altamente ligada aos conteúdos didáticos (letras, números, informação), imagens suaves e pouco incômodas, infantilizadas, conteúdo territorializado em “faixas de idade” , etc. À imagem e semelhança da Escola.

Alunos de escola no agreste de Alagoas em momento de partilha literária

Por outro lado, e aí vamos ao outro extremo do pêndulo, está a posição de que a literatura infantojuvenil estaria “a serviço” da diversão, do entretenimento puro e simples, vazio e desprovido de qualquer reflexão. Quanto mais instantâneo, melhor, porque mais adequado às condições do nosso tempo. Livros para serem folheados ao invés de lidos; predomínio da forma; suntuosidade do produto; livro-brinquedo (na concepção mais rasa de brinquedo), texto leve, divertido, sem nenhum comprometimento com as representações sociais, aventuras simplórias. Eis algumas consequências deste modo de compreender que prioriza o livro infantil-produto de consumo. Concepção esta que coloca a criança não mais no lugar de aluna, mas de consumidora.  O crivo é transferido à vendagem pura e simples, ao que funciona, ao que “pega” no setor estritamente comercial, muitas vezes em associação a outros mecanismos publicitários (desenhos animados, filmes, TV). Independente se se trata ou não de um produto de qualidade, seja educativa que humana. O critério é muito mais pragmático.

Parece que esta dicotomia não tem solução. Ou se vai para um lado e falta Arte ou para o outro e falta formação, engajamento. Mas do meu ponto de vista valeria a pena um último esforço. Grande, porém.

Se a gente, então, num esforço sobre-humano, considera a criança como tal, como criança (como sujeito em primeiro lugar, mas também como cidadã e portanto portadora de direitos), tudo muda de figura. Bastam poucos minutos em companhia delas (mas em companhia mesmo, convivendo, escutando, trocando) para perceber que é tudo muito diferente do que a instituição Escola (pobre Escola, moldada na tela do controle como os conventos, as prisões e os hospícios de Goffman) pretende imprimir. É tudo igualmente muito diferente do que as leis do Mercado (da era do código de barras) tentam impor. A Infância resiste bravamente, seja a uma instância que a outra, no imaginário de cada criança.

E pode ser muito mais violenta, muito mais dramática, muito mais aguda, muito mais bela, poética e complexa e até muito mais obscena que poderia supor a vã filosofia dos técnicos educacionais ou dos gerentes de marketing.

Crianças tibetanas em situações de brincadeiras, fotos de Marilena Adamo

Os pesquisadores da Sociologia da Infância não se cansam de dizer isso. Os antropólogos e alguns poucos psicólogos e educadores que deixam cair as vestes de quem ensina para estar junto com as crianças, para, como “adulto atípico” como define muito bem William Corsaro, acompanhá-la em seu processo de construção de cultura, o qual acontece paralelamente a sua imersão na cultura disponível em determinada sociedade, sabem o que estão dizendo. As cabeças pensantes da Literatura infantil e juvenil deveriam “mamar” mais nesses estudos pra se fundamentar melhor nesta discussão.

Em síntese o que se propõe é que a literatura (bem como o jogo, as brincadeiras, as canções…) não pode nem deve “estar a serviço” seja da Educação que do Mercado. Estes âmbitos, quando caracterizam e pertencem à Infância, se devem servir a alguma coisa, que seja só e tão somente à Infância mesma.

Mostra “Crianças são Crianças”, de Marilena Adamo

Isto não quer dizer que, usufruindo de seus mananciais, a criança não aprenda. A aprendizagem é um efeito colateral do que faz sentido, do que se pode criar e produzir, do que se constrói (principalmente na coletividade), da Cultura. Não quer igualmente dizer que a criança deva ser colocada à margem da sociedade, num nirvana distante das questões importantes e práticas do dia-a-dia da cultura em que vive (no nosso caso o sistema capitalista, que existe como contexto e como tal deve ser vivido).

Diante de um bom livro, a criança não só se diverte (que seria um outro efeito colateral quando estão presentes as condições já citadas) e não só apreende/assimila determinados conteúdos ou habilidades pressupostas; a criança constrói saber, e ao fazê-lo constrói a si mesma no mundo. O que significa muito mais que simplesmente aprender. E infinitamente mais que simplesmente se entreter, ocupar o tempo.

Que grande responsabilidade tem nas mãos o escritor, o ilustrador, o editor, o programador gráfico e todos os outros profissionais envolvidos no longo processo de criação de um livro infantil! Pois não basta educar, nem basta entreter.

Trata-se de proporcionar e de cuidar da relação delicada e sutil entre o sujeito leitor e o objeto livro, a qual pode ser propiciadora de infinitas e inesperadas conquistas e descobertas. A qual nos torna mais humanos. A qual nos fere e nos seduz, como diz Roland Barthes.

É preciso considerar o sujeito criança – em ato – em toda a sua complexidade, engendrado que está dentro da Literatura, para brindá-lo com um produto provocador o suficiente para motivar movimento, mudança de lugares e de olhares, seu crescimento, sua formação. Enquanto enleva e encanta.

Que o livro infantil seja verdadeiro o suficiente para proporcionar tudo.

Sobre a autora deste texto:

Claudia Souza é escritora e psicóloga com especialização em psicopedagogia, psicolinguística e educação artística. Mineira, mora em Milão há seis anos. Publica livros infantis em português, italiano e inglês e artigos em jornais e revistas no Brasil e na Itália. Pesquisadora da Infância, trabalha em projetos de intervenção cultural direcionados a crianças, entre eles o grupo ProgettoQualeGioco e o Istituto Callis Italia. Trabalha ainda na International School of Milan.  (www.quemconta.wordpress.com)


2 comentários

  1. Excelente texto, excelente reflexão .A escola que temos ainda precisa evoluir muito para alcançar a essência da infância, focando no que ela verdadeiramente é. Muita textos do que se chama de literatura infantil subestima demais a criança.Parabéns pela clarez e profundidade do texto.

  2. Oi, Rita. Obrigada pelo comentário. Vejo que temos muitas ideias em comum. Se quiser conversar mais, me escreva, deixei meu e-mail nas mensagens do teu Facebook há algum tempo. Abração!