Reportagem publicada pela revista virtual Blimunda – Fundação José Saramago
Por Andreia Brites
Em julho viajamos em busca da identidade e do jogo de opostos como projeto Encontros, que Margarida Botelho levou a Moçambique e à aldeia Kararaô, na Amazônia. Da FLIP chega-nos uma cobertura especial do Festival, feita pelos jovens repórteres da FLIPzona. Com Danuta Wojciechowska e Joana Paz, percorremos Portugal, num guia pensado para pequenos viajantes. Boa viagem!
EU SOU O OUTRO – Estamos a subir o rio Iriri numa voadeira (barco a motor) com a mochila cheia de livros em branco, mantimentos, disponibilidade, pincéis, tintas e vontades. Levamos um diário em branco com uma frase de saudação em Kayapó: “mey kome rey“, aprendida de véspera. No dia 30 de julho entrámos para o outro lado do mundo; o do início dos tempos, da altura em que os rios eram a casa sagrada dos deuses. À medida que nos afastamos da cidade, vamos entrando na Amazónia dos documentários da BBC, da foresta verde dasgigantes castanheiras, da água límpida que é habitat dos tracajás (tartarugas de rio) e dos milhares de seres minúsculos e maiúsculos que vivem neste ecossistema plural há milhares de anos.
Após cinco horas de contemplação, aportámos na praia da aldeia kararaô. A primeira imagem logo ela impressionante: dezenas de borboletas de asas muito grandes amarelas esvoaçam na margem do rio. As “ué-ués“, como lhes chamam os Kayapós, evocam liberdade e beleza. Na praia, todos os habitantes (à volta de sessenta) vêm ver quem chega da “rua“, expressão usada para quem vem de barco da cidade. Depois de muitos “mey komoreys”, começamos a olhar para as crianças da aldeia: são à volta de vinte; de um mês até aos doze anos de idade. Intuímos que será um bom grupo, poderemos fazer um trabalho coletivo, mas também dar atenção personalizada. A empatia começa a nascer, entre olhares e livros com cores e formas diferentes que vão saindo das mochilas dos “brancos que vieram de longe”, designação com que somos batizados. E é assim neste encontro de mundos que começa a nossa experiência de resgate cultural com as crianças kayapó em Kararaó. – página do diário pessoal de Margarida Botelho e Mário Rainha Campos
O Projeto Encontros
Quando Margarida Botelho concorreu,em 2009, às bolsas do Inov-Arte, atribuídas a projetos de criação artística pela Direção Geral das Artes, Encontros ainda era um embrião do que veio depoisa representar. A ideia inicial era a deconstruir, com a comunidade infantil do campo de refugiados do Maratane, no Norte de Moçambique, um diário gráfico, individual e coletivo. A partir dessa recolha da experiência quotidiana das crianças, a artista, mediadora de leitura e educadora pela arte criaria um livro que documentasse alguns elementos de uma rotina muito distante das crianças europeias e que em simultâneo dela se aproximasse, num encontro de diversidade e identidade.
Assim nasceu Eva, o primeiro livro da coleção POKA POKA-NI, a que se sucedeu Iara, estando já em preparação Sadana e esperando-se ainda, pelo menos, um quarto volume, que resultará de uma viagem a Timor que Margarida vai iniciar em setembro.Mas nada é tão óbvio e linear numa experiência de partilha e integração tão intensa. Ao escolher viver com cada uma das comunidades com quem trabalha, a autora tem de fazer mais do queadaptar um discurso, tem de se integrar, ser aceite, abdicar dos seus hábitos sem rejeitar a sua identidade.
“Como são lugares isolados e nada turísticos quando chego já sou algo que desperta a curiosidade, o elemento exótico, e é essa a faísca que tento otimizar para começar a projeto. As coisas tendem a desenrolar-se de uma maneira muito orgânica quando começo a participar nas tarefas habituais da comunidade“, explica Margarida Botelho.
É um jogo de espelhos onde todos se veem mais ou menos refletidos, e que os livros pretendem mostrar. No entanto, o embate no primeiro Encontro, em Moçambique, foi forte.
“Comecei o projeto carregada de planos, objetivos e ideias pré concebidas, e a realidade do encontro fez-me descarregar toda essa bagagem que me impedia de mover, de encontrar o que mais tarde encontrei. Aprendi muito sobre os outros (o campo tinha 5.000 refugiados com dezenas de nacionalidades e etnias africanas, logo dezenas de línguas diferentes), aprendendo muito sobre mim. Ali estava eu sem os recursos da escola da cidade, sem artifícios, com ferramentas escassas, estava comigo e com o que eu sabia até então. Estava acima de tudo perante esse grande estímulo criativo que é o Desconhecido”.
Ao longo de quase um ano, Margarida Botelho viveu no campo de refugiados, integrando-se nas tarefas da comunidade, partilhando e propondo. Assim foi descobrindo as dinâmicas que lhe permitiram conhecer os outros e convidá-los a participar em atividades de expressão plástica, dramática e de escrita, com vista a registar em precisamente esse quotidiano, que não se limita à sucessão de tarefas, mas igualmente às expectativas, desejos, relações, emoções. Também ela registrava no computador o seu próprio diário, como fez em todos os Encontros.Sem esse registro, o projeto não teria sentido, porque o diálogo tem de ser efetivo e real.
“Eu olho para o outro pela maneira como o outro olha para mim, é um processo de aprendizagem horizontal, para além dos livros/ diários que são produzidos durante a minha estadia. Tento entrar o mais possível dentro da rotina da comunidade: tarefas diárias como cultivar alimentos, ir buscar água, cozinhar, pescar,conversar, brincar, fazem parte de um processo muito rico de troca e encontro. Esse é talvez o meu maior compromisso com as pessoas com quem estou (onde eu própria me incluo): um respeito pela sua cultura e pelos seus valores, o oposto de uma proposta impositiva, invasiva, alfabetizadora”.
Para Moçambique, tal como para a aldeia indígena da cultura Kayapó, na Amazônia, ou para Goa, Margarida levou cadernos, papel, tintas, lápis e canetas como principal recurso, e em cada local montou espaços próprios para a criação. Os resultados dependeram dessa constante adaptação, mas comum a todos foi a recetividade dos adultos que, ao ver os primeiros trabalhos das crianças, começaram a acercar-se do grupo, com curiosidade, acabando por também eles criarem os seus registros como se de uma necessidade se tratasse.
“Por exemplo na aldeia indígena Kararaó na Amazônia, o dia era dividido em muitas tarefas habituais de uma aldeia indígena, que aconteciam em vários espaços. Foi muito importante para o desenvolvimento dos Encontros quando eu o Mário organizamos o espaço do fazer e criar os livros: no chão colocámos uma lona, e com fio de nylon montámos uma parede que funcionou como uma galeria das pinturas que eram produzidas todos os dias, isso fez com que o espaço fosse visitado e usado não só pelas crianças, mas também pelos adultos que começaram a querer fazer o seu livro. Esse espaço começou a significar essa nova tarefa: a criação do livro“.
Em Moçambique, alguns adultos refugiados chegaram a relatar, através de desenhos e textos, episódios de fuga, absolutamente marcantes na sua vida, e que os tinham conduzido ali. Margarida relata que muitos destes testemunhos nunca tinham sido verbalizados, o que atesta o poder destes momentos criativos que eram também encontros entre os participantes do grupo, criança se adultos, e encontros de cada um consigo, com a sua história, coma forma como vê a sua vida.
De onde vem o financiamento?
Encontros não tem um financiamento permanente. No caso de Moçambique, foi a bolsa do Inov-Arte que sustentou o projeto, mas no caso do Brasil foi a editora brasileira da autora que financiou as viagens. Em paralelo, Margarida Botelho e o fotógrafo e educador pela arte, Mário Rainha Campos, que a acompanhou no Encontro na Amazônia e também irá para Timor, fizeram uma reportagem sobre esta experiência para uma revista brasileira, o que supriu outras necessidades logísticas. Como Margarida trabalha neste projeto em regime de voluntariado, os apoios que consegue angariar destinam-se exclusivamente às viagens e a alguns bens essenciais.
A Fundação Oriente apoiou o Encontro de Goa e será financiadora do Encontro de Timor. Para além destas instituições, acontecem algumas parcerias com ONGs, no terreno, durante o período em que Margarida vive com as comunidades.
Por isso, e apesar de acreditar que esta matriz poderá ser replicada em muitos outros países, nomeadamente africanos, tudo depende, sempre, dos apoios que vai conseguindo.
No terreno, as limitações são de outra ordem, materiais e humanas. A mediadora considera que esses imprevistos e acidentes devem ser integrados e vistos como desafios. Foi assim que um refugiado congolês do Maratane, perante a ausência de papel, e necessitando de escrever, foi procurar todos os suportes viáveis,que encontrou em embalagens, papéis soltos, senhas…
Com os Kayapó, uma chuva torrencial destruiu irremediavelmente o papel disponível. Então, o grupo começou a desenhar em carapaças de tartarugas, comum lixo orgânico no local.
Contudo, a maior limitação com que Margarida se defrontou foi de ordem cultural, e foi preciso identificá-la para a poder integrar com sucesso.
“Durante as primeiras sessões que fiz no campo de refugiados quase não havia meninas, raparigas, nos grupos. Não percebia porque é que nos primeiros dias havia tantas sempre ao meu redor e quando comecei o projeto deixaram de aparecer. Tudo isso aconteceu porque numa atitude automática eu disse que ia trabalhar apenas com crianças a partir dos 5, 6 anos. Era muito difícil gerir, num espaço aberto, tantas solicitações de crianças de diferentes idades, mas ao dizer isto e sem saber, excluí as meninas,porque muitas delas, a partir dos 6 anos, têm como tarefa cuidar dos irmãos mais novos. Foi muito marcante para mim o dia em que isso mudou, porque mudei as regras. Elas vieram com os bebês nas capulanas e outros pela mão e fizeram uns livros/ diários maravilhosos. Tenho uma grande admiração por aquelas crianças-meninas”.
OS LIVROS
Na língua macua do norte de Moçambique, quando o contador de histórias começa a contar diz para a audiência: POKA!. Se a audiência estiver prontaresponde: POKANI! É um jogo de palavras que introduz a história e também valida a posição do contador, geralmente o ancião da comunidade.
Assim nasce o nome da coleção, dentro de Eva, o seu primeiro livro.
Eva – apresenta alguns momentos do quotidiano das crianças do Maratane, a par com o das crianças de Portugal (previsivelmente,embora sem nunca ser dito). As gotas de água que enchem termos, garrafas e garrafões no campo contrastam com a banheira cheia de água que convida ao banho, mas as sensações de prazer que a sua frescura causa são semelhantes.
Em ambas as geografias há livros da escola, uns abundantes e totalmente preenchidos, no final do ano, outro acabadinho de chegar, para partilha entre o grupo. As refeições também são diferentes: no campo de refugiados, é o lume a lenha que cozinha a galinha, com coco, amendoins e farinha de mandioca. Na cidade, entre uma infinidade de eletrodomésticos, é a eletricidade do micro-ondas que aquece uma comida congelada.
No campo, as crianças sobem à mangueira, que dá sombra, paisagem e frutas deliciosas. Na cidade, as crianças sonham em subir ao plátano e compram jogos no supermercado. As outras, aproveitam arames e latas para construírem carros e bicicletas. No final de cada parte, quase a encontrarem-se, as crianças ouvem uma história, pela voz de um ancião, ou de dentro de um computador. O encontro dá-se pela televisão, a meio do livro, em duas páginas que se desdobram numa espécie de jogo da glória onde o leitor precisa de um par, para conseguir unir-se a ele, numa das casas do jogo.
O texto é simples, reduzido ao essencial, reproduzindo emoções e entusiasmos das protagonistas. A técnica da ilustração, que usa fotografias do rosto das crianças com quem Margarida esteve no Maratane, e outras de crianças que vivem no hemisfério norte, é muito rica em cor, movimento e sensações. São as colagens de papéis com texturas diversas, as fotografas, a ilusão tridimensional, a utilização de materiais reciclados que acrescentam muita informação a este registro, que se deseja documental.
“Os livros são um pouco como filmes documentários, daí também ter optado por ilustrações com um formato panorâmico. A fotografa remete para o que é real, e por isso o livro tem a fotografia dentro da fotografia, (os personagens de corpo fictício têm a sua fotografia no rosto). Penso que esta opção reforça o lado biográfico e documental da proposta narrativa”.
“Em Yara-Iara, o processo é idêntico, descrevendo um dia do quotidiano de Yara, a menina kayapó, com os seus amigos, a sua família e a comunidade. O pequeno almoço, a sucessão de tarefas que as crianças realizam com responsabilidade e prazer, e a festa da Lua Cheia, com os seus preparativos e rituais. Ao invés, a menina Iara, que tem a mesma cara de Eva e vive numa cidade que pode ser Lisboa, usa o seu computador na aula de estudo do meio, brinca no escorrega do recreio da escola e joga playstation com os amigos. O dia termina com o seu aniversário”.
Margarida compõe sem redundâncias o ambiente urbano da menina europeia, acrescentando elementos aos do primeiro livro, e essa será uma eventual dificuldade a cada novo volume. Se as crianças autóctones têm hábitos e comportamentos desconhecidos das portuguesas, o mesmo não se verifica quando a criança portuguesa lê o dia a dia de outra criança portuguesa.No entanto, os livros não são criados a pensar no leitor português, e sim nos leitores de todos os locais e países onde Margarida desenvolve este projeto.
Por isso, é tão relevante mostrar uma como a outra realidade, nesse jogo de oposição e semelhança.
“Ambos os livros foram feitos já em Portugal e a partir de imagens, cenas que tinha trazido na memória, começaram sempre pelo lado do outro, no caso de Moçambique pelo lado da Eva moçambicana e no caso da Amazônia pelo lado da Yara indígena. Essas cenas correspondem a episódios que foram não só observados, mas também experienciados por nós, e essa experiência gerou uma refexão e um espelho de opostos, quase como se fossem pistas a partir da infância em lugares opostos, para pensarmos todos sobre uma ideia de oposto filosófico: sobre como vivemos, como nos relacionamos com a natureza, com os outros, as nossas necessidades, rotinas e sonhos”.
Eva já chegou a Moçambique, embora não seja possível confirmar se a comunidade do campo de refugiados do Maratane já os tem. No Brasil, Yara-Iara acaba de ser lançado em Belém do Pará. No entanto, a aldeia de Kayapó poderá nunca vir a receber o livro, se se consumar a construção da barragem hidroelétrica Belo Monte, no rio Xingu, que destruirá a aldeia.
De qualquer forma, Margarida Botelho, por vezes acompanhada por Mário Rainha Campos (fotógrafo e educador pela arte), tem intenção de não parar. O projeto poderá durar anos, intercalado com outros que a mediadora e autora continuará a desenvolver noutros contextos. Não tem prazo de validade nem limites espaciais.
“O projeto Encontros tem uma metodologia de atuação, que foi sendo construída ao longo dos anos. Foi-se cosendo uma matriz. Mas é quando o projeto começa a ser renomeado em cada lugar e a transformar-se naquilo que cada um interpreta e necessita, quase torna realmente eficaz como processo transformador. A valorização, a validação, a dignificação de culturas minoritárias e das culturas tradicionais é sem dúvida um compromisso do projeto Encontros e meu enquanto cidadã. Encontro na arte-educação uma ferramenta justa para o exercício desse compromisso. A última coisa que gostaria de fazer no projeto Encontros seria ensinar. O projeto Encontros é para ser sempre aprendiz!”
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